CAMPANHA


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CAMPANHA


O político mudara recentemente o seu discurso, outrora inabilmente endurecido para combater forças opostas. A experiência, no entanto, exigiu que abrandasse a voz, que enfraquecesse a ideologia, que fosse permissivo com as alianças. Ao contrário do que ele mesmo poderia imaginar, cedeu sem muitas resistências às novas demandas que o próprio senso ia lhe comandando.

Para tantos recuos, em razão de manter-se equilibrado, teve por bem que deveria fazer também alguns avanços, e, por isso, encaminhou-se na direção de incorporar alguma poesia à sua fala. Em pronunciamentos, cartas, almoços e reuniões, citava as palavras de outros. Com a insistência, criou uma identidade bonita e útil, pois se sentia livre para emprestar de qualquer um — pensadores, santos, líderes e poetas — a ideia que lhe faria aceitável.

Nas leituras que fazia, percebeu que um escritor conterrâneo seu era bom em dizer as conveniências que ele gostaria de tomar para si. Passou a citá-lo frequentemente em seus discursos.

Somente em encontro com o escritor, por acaso, em festa pública, foi que soube do descontentamento que sua escolha gerara no outro.

“E lhe desgrada, é?”
“Por demais!”
“Pois devia era ficar orgulhoso de ver seu trabalho correndo por aí, vento em popa, fazendo a multidão sonhar!”
“Olha que eu preferia que ninguém nem pusesse os olhos nos meus livros do que ver Vossa Senhoria fazendo uso deles para projetos espúrios!”
“Então o desagrado é com a minha política?”
“Pode estar certo! E peço a gentileza de que, sabendo de minha opinião, não volte Vossa Senhoria a citar meu nome em seus palanques!”
“Pois bem!"

Quando se findou a breve discussão, assessores e amigos evitaram esticar o constrangimento, sem saber que o pouco tormento que tiveram êxito em impedir naquela noite ganharia proporções imensuráveis.

Nos vinte e oito anos que se seguiram, o político, a cada discurso, dentro e fora do país, fazia menção ao poeta de sua terra. Nas tribunas, emocionava-se com a verdade e a precisão de cada texto. Seu nome, seu partido e sua força política foram multiplicados de modo que, o outro, o escritor, teve de se conformar em ver sua fama acanhada pelo vulto dos grandes feitos do primeiro.

Com fina resistência, o escritor tentava se mostrar indiferente à perseguição da qual era vítima. Respondia: “não posso saber como cada leitor meu faz uso do que escrevo.”

O político reforçava, pública e simpaticamente: “Minha dor é não estar nas graças do homem que ensinou tanto à minha alma! Mas ai de mim se soo como um ingrato! Suas palavras já são bênçãos suficientes para todos, de modo que seria deselegante se eu exigisse afeto para um teimoso e rude como eu!”

As referências só terminaram com a morte do político. Na ocasião, o escritor foi assediado incontáveis vezes para se pronunciar. Ponto alto foi o convite do filho do político para que ele discursasse no funeral de seu pai. O escritor recusou-se a falar. Não tocava no assunto nem mesmo entre os amigos.

Um dia, quando ele mesmo já estava perto da morte — ainda vinculado ao nome do outro — disse à mulher:

“Quando nos encontramos na reabertura da biblioteca, ele deu seu jeito de me dizer: Eu acho, realmente acho, que você escreve brilhantemente. Enquanto você publicar, eu vou ler e guardar... porque me faz bem... e porque depois poderei passar adiante. E você, se quiser aprender algo de mim, só posso lhe dizer em palavras aquilo que você já sabe: nenhum homem diz não pra mim! Nenhum! E isso, sinto lhe dizer, é melhor do que qualquer palavra que você venha a colocar no papel."






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